Expresso


Agora: vapor inconstante, efêmero, intangível e abstrato. Everything will melt into thin air!

Os momentos se esvaem, e ele lembrava. Lembrava de quando não havia visto, e de como agia, de como vivia e como a vida parecia uma respiração. Antigamente, ele deslizava como que no vácuo, como que ainda impulsionado pelas contrações do parto. Sem esforço próprio, com uma inconsciência tão grande que era como se ele vivesse sem ter que se responsabilizar por nenhum de seus atos. E, dessa forma, ainda que fossem constantes, seus crimes já tinham sido pagos antes mesmo de se tornarem crimes.

E um dia, numa sucessão de pancadas e lições, lhe foi ensinado a ver. E agora, agora, agora? Os cegos não enxergam bifurcações, não se obrigam a decidir, portanto. Mas a ele foi dado, como um bofetão, caminhos e a capacidade de escolher. Eis aqui, meu filho, sua benção e sua maldição. E agora?

Viver, repentinamente era isso. Ser esse comboio sem mais trilhos pra poder guiar-se. E, como se um mundo fosse seu, se responsabilizar por cada guinada sôfrega, impulsionado aos trancos pelo vapor do âmago de si que buscava... Deus, como era fácil sentar-se no trem e olhar pelas janelas, ver o tempo passando, e numa espécie de fé íntima esperar que o trem parasse em alguma estação e uma voz mansa dissesse “Você desce aqui, querido.”.

E agora? Como ser o guia dessa locomotiva sem saber pra onde ela deve conduzir? Como tomar as rédeas sem saber sequer se vale algum movimento, ou se vale algo? E esperar era impossível. Havia tantos e tantos cegos ávidos por distâncias a percorrer que parar no caminho era como pedir pra ser carregado. E ele foi. Por rumos que a ele não importavam, e suportando com candura cada um que sequer sabia por que andava. E então o levaram ao Fox-trot, ao jazz. E ele iria ao fim do mundo para não voltar à primeira estação. E mesmo que conseguisse, o seu objetivo era voltar ao terminal. Onde ele ainda não sabia ver... Ou ao ponto final, onde, enfim, ele parasse de enxergar pra sempre.

Ele queria, do fundo de si, ser a cega no campo, nos trilhos. Então alguém se pôs ao seu lado: diga-me, o que vês?

E agora? Como explicar que o mundo era algo inenarrável? Como contar a carne infinita sem talhá-la aos pedaços? E como resposta, ele então disse: segura a minha mão. Ambos nascemos e ambos vamos morrer e se não nos dedicarmos a buscar a nossa essência, o que será de nós? O mundo é essa interrogação vasta, você me compreende?

Desvendando aos poucos quem achava que é cego, transmitiu a sua maldição ao mundo todo e agora o mundo todo perambulava sem rumo, até que um cego de verdade, se mostrou feliz. E agora? Agora todos viviam como se tivessem acabado de tirar as vendas, e como se tudo fosse visto, sentido e presenciado pela primeira vez. E o que se faz depois que se é feliz?

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