Normal



- Chega de ligeirezas, mistérios, sussurros, levezas. Chega. Basta desses olhos arregalados atentos a qualquer partícula de ar que se mova mais bruscamente, desse estado permanente de alerta que nos conduz a uma intelectualidade que produz bons frutos, mas nos faz definhar.

- Você rima razoavelmente bem com advérbios.

- Razoavelmente? Bosta, somos dois hipócritas.

- É verdade, mais vinho?

- Por favor.

- Não existe nada mais poético que o vinho.

- Por quê?

- Porque enquanto bebemos não falamos asneiras.

- Nosso silêncio espontâneo é uma poesia mais bela que nossa embriaguez.

- Não gosto de poesias belas.

- Por isso tiramos ouro do nariz e massageamos reciprocamente nossos egos.

- Bosta e basta são duas palavras interessantes.

- E bestas...

- “Bestas” também é interessante.

- Não foi isso, ah, esqueça.

- Você é engraçado.

- Cheio de dúvidas típicas da classe média, dos não iniciados, dos burgueses, olhos cheios por arte que não é arte, kitsch. Isso que você quis dizer? Sim, sou cheio de profundezas que diante de uma análise mais profunda me tornam ridículo.

- Talvez. Meu querido, não se exalte. Suas dúvidas são pertinentes, o seu problema é somente querer responde-las. Escuta, se eu dissesse que a arte moderna é um grande exagero e que o belo é o tradicional você ficaria satisfeito, mas ainda intrigado com tantas coisas boas e que dizem tanto por não dizer tanto. Se eu dissesse, porém, que tudo é arte, você não admitiria certas coisas, que são ridículas e nada mais, como arte. Por exemplo, nossos versos. Isso de “classe média” é ainda mais estranho e me decepciona que tenha partido de você. Em nosso país, somos quase todos classe média, e a dita “classe alta”só o é no nome, pois provêm de um bolo de ex-miseráveis que se não o foram, me intriga saber porque têm objetivos tão típicos de miseráveis e a alma tão rota e insensível como a dos miseráveis.

- O que odeio em você é o fato de que quando nos lançamos numa depreciação mútua, logo você me acompanha na minha auto depreciação e me faz não ter mais o que dizer de ruim a seu respeito.

- Isso ocorre porque você erra buscando conceitos pra coisas que não são propriamente delimitáveis. Conceitos são coisas muito rústicas. Eu não sou isenta de defeitos, mas você verá que eles são mais presentes na execução dos meus versos que na ideia que tenho de verso, uma vez que já não tenho mais nenhuma. Essa minha improdutividade me faz me odiar.

- Você tem escrito algo?

- Não, tenho apenas pensado em como usamos “tu” nos nossos textos. Essa é uma daquelas “belezurinhas” das quais não gosto. Parece que “tu” grita (s) no meio dos textos e concentra toda a atenção em “ti”.

- Ostranenie.

- Fodam-se Chklovski, seus conceitos e teus conceitos. Eu quero escrever algo em que haja algo mais importante do que “tu” e “eu”. Quero algo em que as palavras que têm sentido gritem sobre as outras e não sejam oprimidas por pessoas.

- Use sujeitos elípticos. Mas pare de dizer “algo”.

- Não dá certo. “Tu” é(s) uma praga que grita mesmo que escondido.

- Entendo, use você.

- Não gosto de você.

- Mencione o nome do personagem.

- Não, não é isso. Não é que não gosto de “você”, não gosto de você! Entende? Me desculpa.

- Eu também não gosto de você. Nem de “você”, prefiro “tu”.

- Prefiro-te?

- Não, prefiro “tu” a “você”, mas nunca gostei de você.

- Pensei que éramos amigos.

- O seu “eu” elíptico gritou bastante agora.

- O problema é sua “análise”. As coisas não devem ser analisadas. E eu cansei de te citar aquilo do ovo.

- Estamos bêbados.

- Bêbedos.

- Não sejaS purista.

- Não seja hipócrita!

- Mas nós dois somos hipócritas.

- É verdade, hipócritas, sem amigos, sem dinheiro, sem ninguém, só um ao outro.

- Te amo.

- Amo-te soa mais bonito, eu acho.

- Amo você. Melhor?

- Ah, sinceramente, não gosto de usar, mas prefiro “tu”.

- Me use, sou seu.

- Use-me.

- Deus, como eu te odeio.

- Eu também.

- Vamos dormir?

- Vamos.

Cairam os dois, abraçados, mortos. Cada um dos dois não se suportava mais, mas não poderia morrer e deixar o outro. Ambos envenenaram a mesma garrafa de vinho. Eis, portanto, o conceito de amor. Se Shakespeare não reivindicar a autoria de tal conceito.

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