El Gramófono


Um reflexo dourado em meio a uma rua pode ser muita coisa, mas ele jamais imaginaria que era uma pessoa vendendo um gramofone. Ele foi jogado pra fora de si e de sua rotina. Gramofones são tão incomuns como a vida plena, não que ele soubesse exatamente como funciona algum dos dois, mas a ideia de ter um gramofone na sua sala - talvez quebrasse a chatice de voltar pra casa e não ter ninguém a quem dizer oi, ou de quem esperar um café quente e torradas mal feitas - o impressionou.

Por alguns trocados, comprou o gramofone que ficou só, no carro, até o fim do expediente, quando ele cuidadosamente dirigiu até sua casa, e, curiosamente, dirigir cuidadosamente o levou a reparar melhor no caminho e no céu manchado de rosa e laranja como uma ferida sendo pintada numa tela em vários matizes até que um dia chegue a hora do vermelho sangue, ou do roxo hematoma, se é que essa cor existe.

Chegou em casa e, carregando o gramofone como quem carrega uma criança e pisa em ovos, ele picou o chão com a ponta dos pés até a porta. Abrir a porta enquanto o gramofone estava apoiado em seu antebraço o fez reparar o quanto a maçaneta era velha e como havia voltas sinuosas como caudas de dragão saindo da fechadura e, claro, o quanto ela estava oxidada para ser aberta com facilidade.

A porta finalmente abriu e ele foi atacado por línguas vorazes lambendo entre os seus dedos do pé e com cócegas foi quase impossível equilibrar a relíquia dourada em seus braços. Colocou, finalmente, o gramofone em cima da mesinha de centro, já que acabara de reparar que não tinha uma mesa de verdade. Riu alto das cócegas, agora que podia. Riu como uma catarse e então chorou, porque havia esquecido que tinha um cachorro, e que tinha uma casa, e que existia um céu que se manchava de sangue e fogo e depois renascia do cinza da chuva. Esqueceu que não importava quantos formulários ele carimbasse, sempre haveria caudas de dragão saindo da fechadura e agora havia o gramofone e havia ele próprio refletido no dourado dizendo “você existe e você importa”.

O gramofone não funcionou com discos, mas certamente o disse que ele estava vivo, o gramofone é um tapa na cara, como o tapa na bunda que se leva dos médicos e que no fim diz “respire, você está vivo!”. Quando ele apagou a luz e dormiu com um sorriso no rosto, o gramofone pensou “eu sequer existo, e sou tão importante quanto a faísca pra fogueira, mas se ela queima ou aquece independe de mim.”.

Comentários

Postagens mais visitadas