De "Intelligibility?!" para o TH.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
Não cantes tua
cidade, disseram, mas eu gosto das cidades — minhas ou não — que cintilam na
superfície enquanto suas profundezas rugem, feéricos túneis de metrô. Gosto das
pombas voando leves e, pouco maniqueístas, deixando cair pesadas cargas de
bosta sobre as cabeças das multidões. Gosto das multidões cansadas e
incessantes, dos rostos sulcados pelo cansaço, do movimento, das escadarias.
Dos olhos quase foscos e alguns cintilantes de sonhos, que logo se perderão
também. Gosto de nossa produção, do esgoto que compramos depois, com cara de
água. Gosto dos teatros visitados por uma elite cultural que aplaude ao que
quer que seja de pé e, em quase reverência à hipocrisia, sai reclamando do que
acabou de aplaudir. Gosto dos que compram como que pra tapar um vazio interior,
uma falta de si, e também dos que passam fome e nem ousam mais pedir. Gosto dos
buracos nas ruas, do cheiro de mijo das esquinas. Gosto da cidade porque apesar
das alamedas, das butiques, dos bairros nobres, sempre haverá o cemitério. Gosto
das cidades porque quando não mais gostar, perdeu-se em mim o amor pelo ser
humano.
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