Carta para mim



O mar só é fascinante por suas ondas repetitivas, diferentes, ainda assim, em cada ida e volta. 
O nosso pulmão só é funcional por seus movimentos incessantes, diferente, ainda assim, em cada suspiro.
O ser humano só é vivo por seus caminhar constante, diferente, ainda assim,  em cada passo.  



Mais fundo, mais fundo, afogue-se, seja mais uma gota na vastidão evasiva. Lance o seu ser volátil ao mar, que de tal forma indefinido se define pela indefinição.  Vá nu e de mãos abertas, vá de cabeça erguida e aceite. Ou não, proteja-se, use guarda-chuvas, evite os banhos, seja seco. E não chore! Ou então se entregue e fira-se e chore e debulhe-se em lágrimas e sangue e fluidos e gozo, porque sofrer é estar vivo. Ou então se retraia: pedra, calma, sem esforço, imóvel. Mas até as pedras serão vítimas, até as pedras ficarão úmidas, até as pedras se encherão de limo, até as pedras mergulharão, até as pedras serão seixos, até as pedras. E desse reino indeterminado que dura das rochas aos seixos se entregue então. É onipresente o que deixas te atingir, e é onipotente porque tu deixas que te atinja. Vá então envolto de esperanças e sonhos, proteja-se, mas ainda assim molhe-se, vá e sofra, vá e depois seja deixado de lado para que mofes. Vá mais fundo, mais fundo, seja secura na tumidez turbulenta. Vá! Água viva, massa indefinida no fundo do aquário, mova-se ao sabor das correntes. Assista perigosa a maldade dos dóceis. Assista quieta e difusa enquanto te machucam e sequer notam. Veja tuas carnes transparentes e incrédulas serem feridas com gravetos revestidos de curiosidade. Agite, já em conformidade com o assassínio, os teus tentáculos venenosos. Doe-se.
Calma, um dia serás magma, um dia moverá montanhas, um dia  explodirás feroz na cara de teus algozes, um dia terás a fraqueza, terás o dom da vingança. Um dia queimarás feliz e dirás em teu brilho letal: você também é digno, você também pode carregar esse fardo, você também pode superar que sua casa seja feita em cinzas, você também pode superar a escuridão de meses, você também superará as perdas.
Você também, no fundo, sabe machucar. E talvez você também possa. Talvez você também possa, por vil inocência, tocar com um graveto de astúcia nas entranhas alheias. Talvez você deva se desfazer dos tentáculos e usar palavras, talvez você toque, caravela portuguesa, e marque. Mas mesmo os feridos, mesmo tuas vítimas, mesmo os que agora sabem que és dúbio, voltarão para a praia e para os kits de primeiro socorro, e você, caravela portuguesa, boiará de volta para as águas turvas, e um dia, após tudo, em meio ao silêncio das ondulações do alto mar, em meio ao frio ao qual és indiferente, afundarás, fundo, mais fundo, divindade ordinária. 
Depois de tudo será liberdade. Será o mundo e tu, só, num domingo d’uma imensidão impossível de abarcar. Serás a... E serás tão experiente que não vai mais poder “ser”, serás tão pleno que não se poderá falar em plenitude. Estarás morto, dirão. Talvez, mas tua tumba estará tão repleta de vermes e delícias. Úmidas como os sucos da terra, tuas vísceras apodrecerão lentamente, adocicando as areias e adubando os cravos. Tu vais te liquefazer, e vais escorrendo, por entre as moléculas do solo, mais fundo, mais fundo...


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