10 da noite

 


10 da noite, mastigo uma pastilha para aliviar a dor de garganta. Não tenho paciência pra esperar. Alívio imediato, diz a embalagem, mas te custa horas de movimentos com a língua para dissolver esse bloco de anestésico. Tenho pressa e não sei bem pra que preciso de alívio. Não tenho o que dizer. Então me dou conta que não se tem garganta só pra produzir sons. É como, de repente, pegar uma xícara de chá e perceber que não se tem mãos e dedos apenas pra escrever. Eu me esqueci que se segurava xícaras com as mãos e que se bebia chá com a garganta. E se eu só pensasse nas palavras ou nas musicas, seria menos arte que se eu vivesse de vender livros ou fazer shows? Me pego aos 44 anos de idade, meus filhos, já adultos, não precisam mais de meus conselhos. E mesmo quando precisaram, eu dizia: Não, João, basta você pedir desculpas ! E minha mente retrucava: sê doce e o mundo te devora. Provérbio árabe?    Foram os árabes os primeiros a terem iluminação pública. Preciso de janelas maiores. Luz. O que mãe? Luz? E eu dizia: Não, Luiz , seu pai, como está? Tá bem, a minha madrasta tá gravida, você ficou sabendo? Fiquei! E agora, como o meu ventre murcho, minha voz perdia a utilidade. Do tempo em que eles não entendiam, ao tempo em que eu não queria dizer demais e atrapalhar o desenvolvimento deles. Ao tempo em que ... Agora, o silencio ecoa na minha sala, as cortinas farfalham e todo esforço comunicativo que faço denuncia a minha indiferença. Deveriam ter me dado a mão antes, quando eu ainda era forte pra segurar vocês a beira da pista pra não serem atropelados. Mas agora, meus filhos, vocês são adultos e eu revolvo no acetinado do silencio, digo. Digo sabia, poética, professoral, mas não arrogante. E então rio por dentro. Porque nunca disse, sempre fui velha demais pra me importar, mesmo quando criança era tudo tao pequeno! Bilim Belém, nunca mais to de bem, você é feia e chata! E eu olhava pros lados procurando algum sinal de que as palavras foram de fato ditas. Como se alguém entrasse numa sala e dissesse: carroça!! E todos se espantassem, mas eu pensava: carroça, sim. E ainda agora me dizem: tadinha, vai passar a noite só? Vai passar o aniversario só? Vai dormir só? E o só tem o mesmo efeito que a carroça lembrada sem propósito, mas o tadinha me enche de raiva, tanta que quase penso em dizer: tadinha a sua mãe de ter uma filha tão pequena. Mas sorrio e digo: pois é. Minha garganta? Sim, mais um chá. Foram os chineses ou os indianos que inventaram chá? E as lágrimas rolam e me espanto! Chata ? E digo alto: va a merda! Tadinha, ela não diz mais coisa com coisa. E as cortinas farfalham.

Comentários

folhetim felino disse…
há muito que não passo aqui e ainda bem que hoje foi diferente. percebi a falta que me fazia ler o que vc escreve, vini. confesso que achei que seria um texto em primeira pessoa, sua pessoa e não a de uma mulher de 44 anos. fui pego de surpresa por suposições apressadas demais e isso foi engraçado. tipo, "ué, não era o vini? uma mulher de 44 anos?!" rs
Vinícius disse…
é minha outra persona kkkk. Brincadeira! Que bom que passou por aqui, como vc ta?

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