Does matter matter?


Meu rosto é meio incandescente, meio luz azulada da TV, zunindo em uma frequencia tão alta que já não escuto mais. Não selecionei canal algum, a TV estática no menu. Os vizinhos do apartamento de cima murmuram e discutem o jantar. A solidão é um luxo, penso. E passo cinco minutos prestando atenção ao som do relógio. Em tantas cenas de filme, pessoas se penduram em ponteiros de relógios de estação de trem, mas a cada volta, reflito, o tempo se desfaz de tudo, sem acúmulos. Rio do meu próprio clichê. Não assistirei TV, dedicarei a minha vida à inteligência, à filosofia, ao pensamento e à reflexão. E passo outros cinco ou mais minutos observando o telhado e ouvindo o som da minha própria digestão. 
Às artes o meu tempo será dedicado. Esculpirei inúmeros torsos em mármore que serão postos num prédio com luz muito fria pras carnes que tentei representar. Quero guias no museu com cortes de cabelos diferentes e tatuagens, e óculos dos mais clássicos. Eles e elas dirão: você pode reparar que a cabeça é maior que o pênis, essa desproporção tem a intenção de demonstrar a importância maior do intelecto que do mundo material para o artista. E os alunos de história da arte vão sair do museu pensando: nossa, que gênio, que detalhista. E a resposta do mundo será a rua, réplica dos vizinhos do andar de cima, e as entranhas do estudante copiando as minhas em digestão e em algumas voltas de relógio todos morrerão, e o mármore no museu perdurará.
Até que um dia, uma voz um pouco mais grave que o de costume me censure e todos os torsos, mármores e apartamentos também ruirão. Os livros se desfarão na estante. O mundo se liquefará e depois gelo e neve.
E o relógio em algumas voltas se desfaz da nova era do gelo e novamente à solidão comum, à superpopulação, solidão luxo em apartamentos desocupados. E por todo o tempo não selecionei um canal. A matéria do tempo é a indiferença.  
 

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