Ex ducere



O sol a pino la fora, ele sentia a água do banho na pele ainda úmida evaporar aos poucos. O suor seguiria, brotando lentamente dos poros entre seus cabelos crespos. Sentado, em silêncio, o mundo se movia rápido ao seu redor como um enxame, sua mente em câmera lenta observando o vento morno fazendo as folhas farfalharem nas árvores do lado de fora. A mandíbula tensa e os olhos opacos de repente se desfizeram com o gosto metálico. Mordera a língua.
Ouviu uma risada distante, a irmã abriu a porta e entrou, junto com a fumaça da churrasqueira e o som grave da música. Para que não vissem sua careta, tentou um semblante sereno, grave.
- Você não vai lá fora? Os meninos acabaram de chegar com cerveja, a carne tá quase pronta.
A língua latejava
- Por enquanto não, acabei de tomar banho, não quero ficar com cheiro de fumaça. Talvez tenha que sair mais tarde.
- Sair? Milagre.
- Preciso resolver umas coisas no banco.
- Eu acho que os bancos estão quase fechando, não?

Levantou-se de supetão e foi se vestir. Descalço no quarto, parou de repente com a frieza dos azulejos, o seu reflexo no espelho ao lado. Adivinhou o negror atrás da iris de seu reflexo, invisível ao mundo, mas ele sabia. Sentou-se na cama, estendeu os braços e cerrou os punhos como se quisesse agarrar algo. Sorriu, as mãos vazias. Vestiu-se e ao passar pelo quintal apenas acenou.
O metrô vazio aos poucos se encheu, pessoas conversando alto, risonhas, outras liam.  A voz quase subaquática do metrô anunciou a próxima estação. Tentou coçar as orelhas, os sons continuaram abafados.

Ao entrar no banco, a porta enguiçou. O segurança olhou para seus pés e depois pra seu rosto.
- Alguma moeda, guarda-chuva, chaves?
- Não, coloquei tudo na caixa ali.
- Ok, volte e tente novamente.

A porta novamente. Atrás dele as pessoas diziam:
- Essas portas são um saco, né? Toda vez é essa palhaçada.

Ele respondeu com um resmungo. No fundo não importava.

O gerente do banco disse não poder fazer nada por ele sem a documentação completa, ele não tinha cópias, mas tinha os originais. Agradeceu e se levantou, decidiu beber um copo d'água antes de ir. Ouviu de longe a próxima pessoa falar com o gerente.

- Eu não tenho cópias também, será que tem problema?
- Eu vou começar o processo e você pode trazer as cópias mais tarde.

A água desceu morna, como se flutuasse em sua garganta sem tocar as paredes de seu esôfago. Saiu do banco em passos rápidos, o segurança o olhou novamente pelos pés.
Chegou em casa, a irmã, já bêbada, estava sentada só no sofá.
-Tudo bem?
-Não. Eu não sei.
-O que houve?

 Ele se sentou ao lado dela

- Eu acho que tudo está muito confortável na minha vida, acho que estou um pouco estagnada, presa.
- Mas como você pensa em resolver isso?
- Eu não sei, acho que preciso fazer alguma coisa diferente, radical, pular de bungee jumping, alguma coisa!
- Talvez uma mudança simples, mudar de emprego?
- Não, eu adoro o meu trabalho, acho que só estou um pouco bêbada. É pretensão dizer que adoro meu trabalho? Você tem essa cara de bunda o tempo todo!

Ela gargalhou, ele olhou para o sol se pondo, o rosa/laranja refletido em seus olhos castanhos.
- Mas... desculpa eu me empolgo com minha própria personalidade, você, tá bem?
- Sim, tudo bem comigo. Tenho que ir trabalhar amanhã, vou comer alguma coisa e ir dormir.

Colocou presunto entre duas fatias de pão seco, comeu rapidamente. "Manducar", lembrou-se da palavra. Dar um nome diferente ao nome usual das coisas dá a elas um tom cerimonial. Deitou-se na cama e pensou que estranho que era que dormimos em um amontoado de fibras vegetais, ou sintéticas, tecidas. Onde dormiam os homens da caverna? Será que deitavam-se e refletiam sobre a composição do mundo com o qual interagiam? Tudo parecia inútil, mas talvez fosse a reflexão sobre a inutilidade que levou o homem das cavernas às camas com lençóis de algodão, às portas giratórias, às fotocopiadoras. Que perda de tempo que tenhamos concentrado tanto de nossos esforços em ficar mais confortáveis enquanto a selvageria que é existir permanece intacta. No fundo seguimos os mesmos, comendo carcaças, dormindo em ninhos, ignorantes, burocráticos, distraídos.

Acordou, a manhã úmida, ainda fresca. Lavou o rosto com água gelada tentando se livrar do inchaço das pálpebras (para quê?), vestiu o uniforme. Agora, seu nome no crachá estava associado a um propósito. Vendia-se. Forma e função: o visgo permanente de seu corpo transformando tudo o que comia e bebia em pelos, unhas, urina e excremento, num estado de asseio temporário, de utilidade temporária.  Se fosse parado por um repórter na rua, seu nome estaria acima de sua função, o nome completo, performático.
Portas giratórias e controles remotos, o ápice do desenvolvimento. Violência, ganância e preguiça em contenção. Só a morte não é paliativa.

No trabalho, as pessoas festejavam terem atingido a meta do ano financeiro. Iriam para um bar depois.

- Você tá vindo também? O gerente vai pagar.
- Não sei, estou um pouco cansado.
- Vem! Vai ser ótimo! Você precisa se divertir um pouco, você é muito sério!
- Tá bom, eu vou então

Sorriu, a colega feliz de tê-lo convencido a se divertir, a ser mais "leve". Ele, no entanto, a odiava por ter perguntado. Ele queria ficar só, em silêncio, no fundo do mar de preferência.

***

Uma luz se apaga num lugar vazio, ele caminha entre os postes, acena e o ônibus para. Ao entrar, repete a mesma sequência de sons considerada ideal para a situação. Pede licença, outra interação codificada, e senta-se. Ao entrar no bar, as pessoas sorriem:
- Que bom que você veio!
- Não poderia perder a chance, uns bons drinks de graça!

Surpreendeu se com sua desenvoltura, como um ator ruim que maquinalmente  repete as palavras decoradas enquanto o rosto engendra expressões distintas e ainda assim é aplaudido. Ele, não por muito tempo.

Voltou para casa assim que todos estavam  entretidos demais pra notá-lo sentado só, o ônibus vazio, o motorista dirigia velozmente, ansioso pelo fim do turno. Ele pelo fim do mundo. Chegou em casa e dormiu.

No sonho ele andava por uma rua sem iluminação pública, tudo era negro e fosco. Ouviu uma voz de criança, a sua própria voz enquanto criança. A voz perguntava coisas mirabolantes: se sabemos a fórmula da água, por que não fazemos água? Se o céu é azul por causa dos oceanos, por que não é de uma cor diferente no deserto? Cachorros pensam em latidos? Como que uma planta cabe numa semente?

Acordou com fome de redenção, como voltar aos anos em que o mundo era menos voraz? Decidiu que não, o mundo salivava ainda quando ele era criança. Há outra forma de viver? Uma menos ordinária?

Abriu uma lata de sardinhas, duas por lata, felizes para sempre em salmoura ou molho de tomate, até que o seu olhar se deteve na pele argentina. Havia lido em algum lugar: um arrepio ósseo com desdém pelo ser humano. 50 segundos no micro ondas e comeu ambas, inteiras, mastigando o esqueleto frágil. A irmã saiu do quarto. Um pouco de salmoura escorria do canto da boca dele.

- Meu Deus, você parece um louco com esse cabelo grande, que cheiro horrível é esse?

Não respondeu imediatamente, ele pensava demais sobre tudo pra ter uma conversa despretensiosa sobre a loucura. Não entreteria tampouco o comentário racista.

- Sardinhas, e o cheiro não é intrinsecamente bom ou ruim, é distinto do que o seu olfato tem costume, eu imaginaria.
- Ótimo, você consegue ser hipócrita e julgar as pessoas ao mesmo tempo, parabéns.
- Obrigado.

Não havia propósito em apontar culpados e pensar em quem começou o quê, o fato continuaria sendo que ele não encontrava o equilíbrio entre ser genuíno e viver em sociedade. Levantou-se e saiu, novamente o reflexo no espelho do quarto. O que sabia conscientemente sobre si era ínfimo diante de tudo o que não sabia, o reflexo sorria, ele, sem entender o porquê, também.
A caminho do trabalho, viu um pombo ser atingido por um caminhão ao tentar alçar vôo. As penas voando e o sangue no asfalto negro refletindo as nuvens; sentiu-se ambíguo por achar o movimento das plumas  bonito. Entendeu que pra ele um átimo de fruição estética às vezes era mais importante que um ser vivo e por entender o que sua irmã chamaria de a "beleza feroz das coisas negativas, porém naturais" sentiu orgulho e depois nojo de si.  Decidiu que não era digno de caminhar na largura da avenida, foi pelos becos por quanto tempo foi possível. O rosto impassível se decompondo e refazendo enquanto ia mais fundo em sua tormenta moral.

Uma vida inteira organizada em torno de ser um tapa na cara de quem dificultou a jornada quando ele era frágil. Uma vida inteira de micro vinganças que são apenas a frustração sistemática de todas as expectativas alheias sobre si, de repente o seu próprio nome apareceu na lista de pessoas que ele provaria estarem erradas.

Tentou, por todo o dia, acabar com a ideia fervilhando em si que ele era uma pessoa má. Seria isso o que as pessoas sentiam ao aproximar-se dele? O cheiro abafado de sua vileza ? Por muito tempo, ele achou horrível que as pessoas ousassem apontar-lhe os dedos quando elas também eram falhas, até que surgiu a possibilidade de que elas não o julgavam como quem diz: "eis a criatura moralmente inferior!" , mas mais como quem avisa aos outros do chão úmido ou da tinta fresca. Mantenha distância, humano de moral escorregadia, não manche sua índole. E caminharam todos ao redor, evitaram tombos nas intersecções com o seu trajeto: os amigos de quando morava com os pais, os amigos de quando estudava, os amigos de trabalho, os amigos da ... Não havia nenhuma situação em sua vida social em que ele tinha feito um amigo exceto pela convivência forçada, a irmã também o esqueceria assim que se mudasse pra o novo apartamento, ele teria que procurar um lugar agora que a renda da irmã iria ser "finalmente investida em morar no seu próprio apartamento em vez de dividir aluguel com o fleumático-melancólico que é o seu irmão" como disse a tia num almoço de família.

Uma mão fria em suas costas.

- Você pode vir na minha sala quando tiver um tempinho?
- Pode ser agora se você puder, eu não estou ocupado
- Se você já sabe a razão, não preciso te chamar no meu escritório. Você pode achar que sua companhia vale muito, mas na verdade a gente te paga pelo trabalho mesmo, você atualizou aquelas planilhas?
- Claro, desculpa, eu vou terminar agora!

Digitava as planilhas enquanto cogitava a reação comum das pessoas no tipo de situação em que ele se encontrava. A maioria iria buscar entender as vontades alheias e tentar satisfazê-las, tentar se encaixar, tentar encontrar em si uma espécie de amor pelo que foi corrompido, homogeneizado.

O fim do expediente chegou, os colegas saíram e ele terminou as planilhas na hora exata em que deveria sair. Entrou no elevador e ficou confuso por alguns segundos com a quantidade de botões. Pensou que a derrocada do mundo moderno era o excesso de opções, de possibilidades. O reflexo no espelho do elevador certamente era uma com mais intensidade, os olhos quase em faíscas. A porta se abriu e ele saiu do prédio. Pisou na calçada sem considerar o passo, o contrário do que fazia em sua outra doçura calculada, e o sapato estalou no concreto. Caminhou até a estação do metrô, a catraca travou. "Cartão Inválido". Seguiu adiante. As rodas do metrô rugiam nos túneis, como se alguém afiasse facas ao lado de seus ouvidos.






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