Manteiga cremosa e identidades consolidadas



Imagina viver num mundo em que o seu jeito de ser é encorajado e a maneira como você vive não só é uma possibilidade, como é a forma de viver mais retratada e representada em sua humanidade e complexidade. Imagina ser visto como uma pessoa respeitável e entrar numa loja sem sequer perceber que tem um segurança e que ele não faça questão nenhuma de cruzar os olhos com os seus. Imagina que planos e que realizações a coletividade de pessoas ao seu redor trabalha em conjunto contigo pra garantir pra si própria e pra você em troca da sua participação na sociedade. Imagina que histórias da sua vida estão conectadas a episódios que as pessoas acham concebíveis e que reiteram maneiras de se relacionar que as pessoas ao seu redor inevitavelmente já viram em realidade ou ficção e não temam pelas criancinhas. Imagina andar por aí e não ter que pensar em violência ou se a sua cor,  sua voz, suas roupas ou seu jeito de andar vão ser usados como justificativa a qualquer sanção que te imponham. Imagina não ter que pensar muito sobre como te categorizam porque tem uma placa bem simples na porta do banheiro, mas que prova que a sua identidade está tão consolidada na cultura que é icônica e acima de questionamentos. Imagina que a sua alegria e sua libido sejam vistas como uma faceta ou um fragmento de você e não a sua totalidade. Imagina dizer que tem um animal de estimação e evocar uma ideia de interesse e carinho por outras espécies e não de prêmio de consolação. Imagina ter sua existência considerada válida e não um desperdício. Imagina um adesivo que represente o seu núcleo familiar e que, embora revele um certo mau gosto e naturalize o seu privilégio, não incite ninguém a dizer que vocês irão todos queimar nas chamas de um espaço conceitual metafórico em especial. Imagina olhar para o seu passado como algo particular e íntimo com positivos e negativos, com vários contextos e memórias afetivas e aprendizados diferentes e ninguém achar engraçado demais ou, sem sequer te conhecer, te dizer que você devia se arrepender.  Imagina doar sangue pra alguém com quem você se importa e não jogarem fora. Imagina não ter, como condição para o seu bem estar emocional, que estabelecer certa distância e desapego em relação às pessoas da sua família. Imagina não ter que deixar pra trás tudo o que você conquistou e usar todos os seus recursos pra começar novamente onde você possa não dar bola pra ameaças contra sua vida. Imagina só uma manteiga cremosa que mesmo no frio seja fácil de passar no pão e o sol brilhe em benção à sua mediocridade e você sequer tenha que reconhecê-la.

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