Lírio



Queria o drama de caracteres de Machado. A interação entre pessoas e psiquês distintas e seus respectivos corpos, mas sentado no calor úmido do terraço ao lado do canal, estava só. O marido dormia, ele decidira fumar um cigarro. Quase nunca fumava, costumava dizer que fumava socialmente, mas isso implica socialização. Odiava o gosto amargo do tabaco, e bebia um refrigerante estranho - que ouviu falar que tinha gosto de chiclete - para compensar. Irn- Bru. Uma abelha veio em direção a lata e saiu logo em seguida. Olhou para o alto e uma pomba voava com um pedaço de pão mofado no bico, outras pombas e gaivotas a seguiam fazendo estardalhaço. Logo voltou a gaivota com o pedaço de pão no bico e pombas e outras gaivotas em perseguição. O gosto amargo do cigarro na boca, tomou outro gole da bebida laranja. Um trem a diesel passava sem parar pela estação perto de casa e tudo parecia caótico, embora prosaico. Quando era adolescente, com frio na barriga antes de embarcar no primeiro avião, imaginava que sentiria a experiência de voar como os pássaros sentem. Leveza. Descobriu rápido que se tivesse passado 18h num caminhão em vez de um avião não sentiria muita diferença. O trem também não tinha nada de mágico, de expresso polar em badaladas de sino por montanhas nevadas, como imaginara. Olhando para as gaivotas no alto, não saberia distinguir  se o barulho vindo dos trilhos ao lado do canal era de um trem ou de um carro velho.
Decidiu entrar quando as nuvens se aglomeraram num grande novelo negro pairando sobre a cidade. A luz do sol incidindo lateralmente sob a poeira em tons de rosa e laranja  era mais sublime, por um momento, que tudo o que havia procurado, deu as costas.


 Queria saber como seria ser como o pedaço de pão em suas imperfeições e círculos de mofo, ainda disputado e desejado. Queria ter em si algo poético e irresistível, apesar da amargura, como o cigarro. Queria encontrar a intensidade dentro de si. Queria ao menos a surpresa de ser completamente diferente de como o concebiam. Mas de volta à sala, olhando para o próprio reflexo, percebeu que o seu algoz, sua grande expectativa em relação a si, era implacável. Queria ser menos arquetípico, queria ser como uma árvore que floresce, dá frutos, deixa cair suas folhas e segue em frente. Queria não hesitar, não calcular. Queria deixar-se ir, liberdade, leveza. 
 E passava pelas estações em grande alvoroço, voava como um caminhão, pendia sobre o mundo num emaranhado negro. Agora sob a luz laranja do sol poente, irn-bru.

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