Dormio ergo sum

(Imagem de Fernando Góes)

Ele caminhou rumo à varanda, despretensioso. E, então, foi como se o vento tivesse levado um véu que estivesse sobre os seus olhos e a cidade toda, que ele ignorava com altivez, fizesse uma aparição especial. A chuva caia com lentidão e as luzes todas acesas, amareladas, tremiam, de emoção talvez. Daquela altura era como se ele estivesse em cima de uma duna gigante e o mundo fosse coberto duma poeira dourada, e talvez aquilo fosse o que viria depois da desertificação, porque também a morte é uma escassez tremenda que de repente adquire a capacidade de sublimar qualquer sofrimento que se esconda no seu brilho dourado.

Tudo parecia estar tão milimetricamente certo que ele achou justo que ele sofresse, porque até o que estava errado estava tão errado que não podia não ser intencional. A prece de uma certa Lóri lhe veio repentina e os olhos encheram de lágrimas insossas. Ele nunca saberia, mas os olhos úmidos refletiam a luz das ruas e suas pupilas pareciam janelas para uma alma leitosa, de tom âmbar. Tanto quanto a cidade, quem o observasse saberia que seus olhos eram armadilhas e que escondia perigos inimagináveis nos becos ou nas talhas da íris castanha. Ainda assim, seria impossível resistir àquela fragilidade dócil com que a chuva caia ou com que seus olhos marejavam.

Após algum infinito, ele se surpreendeu olhando a cidade da varanda, e então não conseguiu mais saber por que estava fazendo aquilo. Embora o êxtase parecesse surreal, aqueles segundos em que ele olhou a janela como se o mundo fosse eterno e ele fosse sempre estar ali foram mais intensos que tudo o que já o havia acontecido, só a sensação de êxtase nos permite encarar a vida real de frente.

A realidade, portanto, é o sonho? Talvez, e dormimos enquanto achamos estar acordados. E Deus ri, ri com riqueza, um sorriso que é uma fruta madura demais que começa a apodrecer, e o regozijo de Deus é também escárnio por sua própria criação. Somos vítimas da divina psicologia reversa, e também Deus o é. Porque somos feitos à sua imagem e Deus olha o mundo com os olhos marejados, admirando a riqueza e o perigo de nossa existência, ao mesmo tempo em que ele também é tão rico que se desconhece e se surpreende com sua existência enquanto vê que todos nós dormimos, portanto existimos.

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