Quelícera


Jogo de pernas delicado, um balé surdo e fatal. Corria um escorpião na areia quente. Um rio leitoso descia inexplicável pela garganta que, contra todas as expectativas, não se ressecara mais se tornara ainda mais plena. Envolta de aridez, a boca se abria contra o sol, como que pronta a subjuga-lo e engoli-lo. Ela havia falhado. Consigo e com todas as convenções humanas já criadas, ela havia falhado. A falha, contudo, não despertou nela nenhuma cólera, nenhuma infelicidade, nenhuma inquietação consigo. Sede. Uma sede tremenda se estabeleceu sobre ela e só isso. Ela jamais voltaria a viver como antes, jamais seria a mesma, talvez jamais voltasse a viver entre os humanos e agora, em meio a essa paisagem desértica, ela quis tudo de uma maneira tão maior, tão além dela própria, que se deitou no chão e abriu a boca. Não choverá. Não é da sede efêmera que se desfaz com um gole, estamos tratando de alguém que precisaria beber o oceano. Ela respirou, pausadamente, com a boca aberta. Passou o escorpião próximo a seus pés, ela o fitou como quem espera alguma atitude. O escorpião passou direto, com o ferrão içado, transbordando uma espécie de suor e veneno. Fechou a boca e o observou passar atônita. Era o segundo escorpião.

Como ela, os escorpiões podem viver com pouco, mas é ilusão pensar que a sede e a fome deles são menores. A sede é o leite que torna plenos aqueles que sequer sabem que querem. Tanto queria o escorpião, que marchou em direção ao primeiro e o atacou, sem aviso. Nem ele saberia que atacaria o outro, é possível dizer. Na indiferença do calor do solo, as pinças destroçavam a dureza do corpo da vítima e levavam os seus pedaços miúdos a boca ainda menor, não menos ávida. As lágrimas encheram os olhos e a boca se desfez em riso. Gargalhou. Ela levantou, calçou as sandálias amolecidas pelo calor e caminhou, quase sem rumo. Ela jamais saberia, senão no coração, que iria atacar.

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