pas de dieux



Talvez com neblina e vento frio, ou chuva, esperar por aquele ônibus não fosse um martírio tão grande. Se a parada de ônibus estivesse deserta e não houvesse esse sol prometendo extrair até a última gota de suor de seu corpo, ela estaria em um estado de profunda contemplação e comoção, as lágrimas conseguiriam chegar aos olhos e, depois de choradas, conseguiriam escorrer. Agora, contudo, o choro mais profundo evaporaria antes mesmo de virar lágrima, seria como o miado dos gatos quando não há ninguém em casa. A vida nos trópicos em temperaturas tão altas parece desprovida de poesia.
O ônibus finalmente veio. Depois de passar algum tempo em pé  —  para dar lugar a uma simpática senhora que logo começou a ralhar sobre as roupas das jovens hoje em dia  —   ela finalmente conseguiu sentar, era o seu lugar favorito. No fundo do ônibus, no lado oposto ao que sentava o motorista, ela sentava na pose mais serena que conseguisse e, embora parecesse contemplar a paisagem, ela torcia.
Que se quebrem as correntes. Que um vulto rápido e certeiro me atinja pelas costas e meu corpo se lance ao ar, explodindo em tripas e sangue como fogos de artifício. Que eu apareça, repentina e feroz, diante do criador e com a voz de mil trovões o interrogue: é assim que me amas?  A quem dedicas tantos sacrifícios? Me abandonastes em meio a coxas, pelos, bocas e o hálito quente  de quem me instiga o ódio em teu nome! De que te serviu ter entregue mais uma filha? Eles não continuam lá? Feito porcos, suando, babando, encobertos de fluidos e imundície.
De pé, ele observava e admirava a vivacidade que exalava da garota no canto do ônibus, os olhos entre faíscas e marés se iluminavam e apagavam com a luz do sol, filtrada pelos galhos do caminho. Ela é como um farol, simultaneamente doce e imponente de pé sobre a baía, guia dos marinheiros perdidos, monumento dos que têm o pé no chão.
Ao perceber que era observada, toda a reflexão mudou de tom, como se o rio tivesse encontrado uma barragem e tivesse que se conter, ao menos até a próxima chuva. Pegou uma barra de chocolate na mochila pra disfarçar a vergonha que sentia, como se tivesse sido pega em pleno ato criminoso, voltaria a odiar depois.
Deus, do inferno, ponderava: um ódio tão profundo que não se abate com chocolate nem gera frutos palpáveis ou é mostra de covardia ou disfarce de amor.    Não me lembro de ter criado covardes. 

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