Fairy tale


Era uma vesga, todos os familiares estavam reunidos. O seu sonho era que houvesse uma escada na qual ela pudesse se sentar e admirar o sol poente, e a alegria quase líquida transitando fluida entre um e outro parente. Contudo, não havia uma escada, ou um degrau. Havia uma mureta em que ela se deitara, havia algum tempo, para apreciar as nuvens e deleitar-se com sua própria felicidade. As nuvens voavam rápidas no céu e mudavam de coelhos para aviões, para pessoas, rostos...

Deus. A face de deus aparecera em uma nuvem, como um alerta. Aliás, para quem tem pendências consigo mesmo Deus nunca parece bom presságio. Mas dizem que é bom temer a Deus. Deus, como ela era medíocre! E agora, era isso a vida? Fazer da luz do sol um novelo e de si mesmo uma gata abobalhada? Fazer da sua família a imagem de comercial de repelente? Como eles eram imperfeitos! Sua mãe, a tradicional dona de casa, prestativa, relativamente bonita e burra. Seu pai o pai perfeito, funcionário público que decorou um manual de direito administrativo pra passar o resto da vida fazendo nada menos que carimbar papel. Trabalhador, trabalhador, trabalhador, alguém pra quem todo o resto era banalidade, que embora sorrisse naquele momento estava bem pensando em contas e números e números e notas e tudo mais que é útil na vida de um homem interessante como uma flor de plástico mordida pelo cachorrão sapeca. As irmãs gêmeas, ambas deslumbradas, cada uma de sua própria maneira. Uma louca por livros imbecis, a outra louca por músicas imbecis, ambas com seus respectivos namorados patéticos e machistas. Ela, burguesa até onde fosse possível. Tênis de marca, roupa de marca, cabelo da moda, ideias de marca... Uma escada na porta da casa pra admirar o por do sol? O que era isso um conto de fadas? Eram muitos anos vendo filmes americanos, com “way too much victorian houses” e seus respectivos moradores sendo profundos em suas escadarias velhas e podres.

Todos riam com as primeiras palavras de seu irmãozinho mais novo. O quê? Você pensou em “Gugu-dadá”? O que é isso? Branca de neve?

Seu irmão falava algo como “ava” e se babava todo enquanto todos se deliciavam com a abissal inteligência da criança de um ano e meio: olha! Ele falou água! Uma amiga da família chegou, e avistou a criança: Oh que guti guti, como ele é fofo e lindoooo. Apertou suas bochechas. O bebê a olhava como que deslumbrado. É, o mundo, afinal, é medíocre e perfeito, pensou. A criança, de cara de deslumbre passou a cara de tensão, e então saiu. Quase 1 quilo de fezes mal digeridas. A ideia da escada na porta novamente passou por sua cabeça, ela vislumbrou mais uma vez o mundo perfeito. E então se voluntariou para limpar o irmão. O mundo era frustrante afinal, e ela queria achar a frustração antes que a frustração a achasse, só assim seria infeliz a vida toda, de certa forma, enxergando o mundo e suas duas (ou mais, ela era estrábica)faces, mas evitaria a idiotice e o clichê que seria tomar arsênico, considerando que ele se chamava Amy Aribov. O quê? Um sobrenome polonês - ou algo assim - cai bem pra uma família perfeita. Afinal não é a bela adormecida, mas também não é Cândido. E ela não é forte o suficiente para não voltar a idiotice. O que resta além do mediano? A felicidade total e inverossímil ou o tormento interminável de quem não sabe lidar com decepções.

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