Mr. Dontsmoke



Era difícil, pra ele, tentar continuar a ser grave. Saía, ao fim, tudo muito bonachão, muito clichê. O ônibus estava vazio, deslizava, como um defunto, rolando rua abaixo. Os sopapos involuntários que seu corpo levava do ônibus não eram capazes de tirá-lo de seu idealismo. Dentro daquela caixa de alumínio semi-enferrujado, com possívelmente mais de 50 anos, o teto caia aos pedaços, deixava frestas de luz através das quais o sol estava rachando, literalmente ...Ele, contudo, estava num double-decker londrino. A chuva fina, a neblina... Picadilly circus, as luzes. Ele quase era feliz. Quase.

Agora o ônibus, se é que não é um insulto aos ônibus chamá-lo assim, estava lotado. Ele, um intelectual das altas rodas, descendente da nobreza europeia...Ele tinha que acreditar nisso, ele tinha. Ele sentia uma coisa, talvez da vida passada, ele era nobre, não podia ser um qualquer, não podia.

Omni. Haviam as pessoas distintas e haviam aquelas que, bem, não eram distintas. As iguais. Esse era o “todo mundo”, o geral, a ralé. Bus. Ele se conduzia para longe do comum com sua imaginação... mas ainda assim não era grave. O escapismo não era só do destino cruel [ que mais era criado por outras poucas pessoas que manipulam as marionetes ] era da sua falta de nobreza, dinheiro, classe...

Quase feliz, não conseguia ser como todo mundo era, não conseguia simplesmente ignorar que a sua existência era como a da fumaça no ar, considerada a cronologia divina. E, embora soubesse que a fumaça é feliz quando não se lamenta por sua desaparição próxima, nem teme esvair-se, é fumaça e só fumaça, só fumaça. É o momento em que ela se torna visível, a fumaça, quando ela está sendo só fumaça. Contudo, ele não temia esvair-se, mas esvair-se sem esse momento. Sem esse momento em que as pessoas percebessem que ele existe - existe? Havia inúmeras pessoas ao redor, mas ele era incapaz de voltar de Londres e sentar-se ao lado delas, embora elas estivessem sentadas ao seu lado. Ele era uma pré-fumaça preparada para se lançar aos olhos humanos, mas sem fogo para surgir e sem ar para esvair-se. Passava macio pela vida alheia sem marcar nem ser percebido...

Por que ele não podia ser nobre de uma vez por todas? Ou pobre e pronto, mas que a felicidade não estivesse em uma coisa que ele almejava sem conseguir. Ele temia sua fluidez e sua falta de matéria, sua dificuldade em ser firme e em fazer com que as pessoas sentissem que ele estava lá. Ele sentia, era isso, ele era o mar engarrafado. Teria a fúria implacável, mas não tem volume. Por quê?

Fumaça, água, ônibus, sol. Ele tinha os quatro elementos, mas a existência era demasiadamente implacável. Não havia tempo no mundo para dar sentido a elementozinhos, classezinhas, gravidadezinhas, gravidezinhas, pensamentozinhos, punimentozinhos, escapismozinhos, conformismozinhos, pessoinhas, Londrezinhas, onibuzinhos vermelhinhos.

A felicidade não é de quem enche a boca de saliva almejando o futuro, nem a existência de quem lambe os beiços e imagina um passado que justifique os passos no caminho. A existência, a felicidade, essa pela qual muitos morrem e vivem, vendem almas e compram a beleza e a riqueza. A felicidade é de quem se é. Com a crueldade de um yoga nos infernos, com a leveza da fumaça, com o movimento involuntário dos ônibus, com o nada. A felicidade é tudo o que se pode querer. A felicidade é a tranqüilidade. E ainda depois de toda essa filosofiazinha, ainda não se é grave nem feliz.

Então, entra o assaltante. Ameaças e falas, e medo... um tiro. A mulher, indiferente e insignificante ao seu lado. Cai a bolsinha pequena e ensangüentada... Se esvai Londres, se esvai sua depressãozinha, se esvai sua dorzinha, seu aininguémeentendezinho. Nua e crua, ao lado de sua dona. A carteira de identidade, o plástico morno, recém colocado, o sangue. O nome da mulher, sem eufemismos e figuras de linguagem, sem apelidos, sem máscaras. Dona Felicidade, morrera ao seu lado e fora enterrada como indigente.

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