Resposta à carta 1.


A.

Estou tomando chá. Sim, chá. Em meio ao cerrado brasileiro num frio pouco sustentável, chá, e com adoçante! Por que? Talvez o ideal, a vida de comercial que você mencionou. Li um livro sobre pessoas com a consciência hipertrofiada (Memórias do Subsolo), e chego a uma conclusão: nunca eu ou você teremos uma vida de comercial. Não por que “não nos deixamos ir”, “não nos entregamos”, mas porque toda entrega proveniente de nós é calculada. Uma vez que se vê a realidade, acabou-se o resto. “Ovo visto, ovo perdido”. E em meio às danças, felicidade, luzes, haverá em nós uma semente de descontentamento. "É só isso?”. É cruel e venenoso dizer isso pra você, sabendo que eu também me sentiria péssimo se me dissessem, como uma bofetada, mas a vida, meu bem, é “só isso”. Ou você se deslumbra com ela assim mesmo ou vive consciente que até o tudo ainda será pouco. Essa sensação de injustiça do mundo, de haver pessoas que têm tudo o que aparentemente nos seria necessário pra sermos felizes, não passa de uma ilusão. Ainda que estivéssemos na carreira que desejássemos, com um salário satisfatório, alguém interessante ao lado, é quase certo que algo como “o que se faz depois que se é feliz?” surgisse e acabaríamos por estragar tudo. E talvez eu até já tenha feito isso uma vez, você sabe do que estou falando. Estamos sendo felizes desde agora e é tão sem graça como poderia ser. O que resta senão fazer o que se deve, ainda que nos achemos completos idiotas (chá, indiano...)?

Aviso: qualquer busca por êxtase, preenchimento de “vazio interior”, espiritualidade, resultará numa espécie de ignorância, amor pelo pouco, que te permita, como faz a maioria, ser feliz e sentir-se pleno. Caso contrário, numa felicidade efêmera que será acometida e corroída pela consciência da simplicidade de tudo. Ou seja, esse chá é só um chá, e eu vou deixar que ele seja só um chá, porque se eu restringir a capacidade simbólica dele a isso ou aquilo, vou criar expectativas imensas e depois acabar vendo que, apesar de todas as metáforas possíveis, trata-se de chá.

Abraços e beijos amargos,

Vinícius dos S. de Souza

P.S.: essa resposta não te livra da obrigação de me enviar a carta em papel, pelo ideal da troca de cartas que insistiremos em sustentar.

Comentários

Postagens mais visitadas