Refalling


Um gosto amargo, metálico, na boca. Uma afta que era como a marca física da revolta de si contra si mesmo. Como se andasse sempre fugindo das bifurcações e encontrasse, enfim, a terra sem trilhas nem caminhos já traçados. Perdido, pegou, em sua estante mal arrumada, um caderno dos tempos do curso de Inglês e uma caneta velha da escrivaninha. Começou a apurar seus sentimentos e buscar do fundo da alma a dor que queria arrancar do peito. Nos ouvidos, os fones vibravam, notas de piano, voz melancólica. Almost blue...
Abriu o caderno nas últimas páginas, as que estariam em branco, mas as do caderno de cerejeiras na capa não estavam. Nomes dos amigos da época da escola, em katakana, seu nome, em supostos hieróglifos, e uma lista de coisas a lembrar. Oral test, read Dr. Jekyll and Mr. Hide, October 29th, mecredi = quarta-feira, reciprocity... E então, folheando um pouco mais, a letra de uma música: when your heart is all alone every second seem so long, when it is just you, you can't see through these old clouds that rain so blue... but when somebody loves you, it's easy to get through.
E então lembrou, lembrou que em algum lugar do mundo havia alguém que viveria se ele não existisse, mas existindo, ele sabia que tinha, consigo e para si, um coração que talvez sobrevivesse se o perdesse. Contudo, ele não estava mais perdido e esse coração, então, era seu. Pegou de volta a caneta e buscou as folhas brancas, escreveu as primeiras linhas e um cheiro estranho invadiu suas narinas. A caneta era dessas com tinta perfumada.
Subiu ao ar aquele cheiro, de todas as frutas e de nenhuma fruta específica. Que emaranhado de sensações era perder-se, achando estar só e então lembrar que era amado. Tutti Frutti. E então, depois de um silêncio chiado em que soube que seu coração também existia e pulsava, explodiu de súbito a voz, Maria Bethânia: é o amor outra vez...

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